Todos os dias há idosos e pessoas com mobilidade reduzida que trocam a solidão e o isolamento social pelos passeios da Pedalar Sem Idade. Conduzidas por voluntários, as bicicletas adaptadas desta iniciativa circulam por 12 cidades do país, mostrando à comunidade que envelhecer não é parar. A s_cities foi à boleia de uma delas e ouviu dizer que “a cada volta os dias ficam mais felizes”.
Aos 91 anos, Filomena Paiva já não tem a memória de outros tempos, mas nunca se esquece que as quartas-feiras são dia de passear de trishaw, uma bicicleta adaptada com três rodas e um confortável sofá à frente que leva até duas pessoas. Ao seu lado costuma ir Maria das Graças Santana, de 76, outra entusiasta destes passeios pela cidade de Lisboa que, garante, têm o poder de rejuvenescer as duas amigas.
Uma sorri e acena a todos os que se cruzam com elas, a outra gosta de ir a cantar pelo caminho, em especial a canção “Madalena do Jucú”, de Martinho da Vila. “É uma forma de trazer mais alegria e pertencimento a todos, não só a nós que estamos sentadinhas a apreciar as vistas, mas também a quem vai lá atrás a pedalar”, diz esta brasileira do Rio de Janeiro, a viver em Portugal há seis anos. “A cada volta, os dias ficam mais felizes”, acrescenta Filomena, que se inscreveu através do Centro Social e Paroquial de Santa Joana Princesa, no bairro de Alvalade. “Venho aqui todos os dias para não me sentir sozinha e não passo sem ir à missa, mas é verdade que quando há passeio fico ainda mais contente”, revela a idosa.
Assim se cumpre o propósito da “Pedalar Sem Idade”, uma iniciativa que visa combater a solidão e o isolamento social de idosos e pessoas com mobilidade reduzida, proporcionando-lhes passeios gratuitos em bicicletas elétricas adaptadas, conduzidas por voluntários. A inspiração chegou da capital dinamarquesa, Copenhaga, onde em 2012 nasceu o movimento Cycling Without Age, sob o lema “direito ao vento nos cabelos”. Hoje está presente em mais de 50 países, incluindo Portugal, onde surgiu, em 2018, pela mão da associação sem fins lucrativos Pedalar Sem Idade. Começou pela capital, mas, aos poucos, foi aumentando o número de voluntários – são já 300 –, de passeios – mais de 2500 no ano passado – e de beneficiários, acima dos três mil. Ao mesmo tempo, o raio de ação foi alargando e já está presente em 12 localidades do país: Guimarães, Coimbra, Castelo Branco, Torres Vedras, Mafra, Sintra, Cascais, Torres Vedras, Lisboa, Almada, Castro Verde e Vila Real de Santo António. O movimento também se estendeu a mais cidades, através de outros grupos e associações.

De todos os pontos do país chegam histórias e relatos que falam “acima de tudo, de um grande sentimento de felicidade e de liberdade”, conta a coordenadora de operações da Pedalar Sem Idade, Inês Pestana. “Já ouvimos passageiros a dizer que aquele dia tinha sido o primeiro em que não choraram, desde há muito tempo, e também há situações de pessoas que durante muitos anos não saíram de casa por causa da falta de mobilidade e do receio da rua”, revela a responsável. A testemunhos como estes juntam-se ainda os resultados de estudos desenvolvidos por vários centros de investigação, como o Yunus, da Universidade Católica, que dão conta de um impacto positivo, tanto a nível social, como da saúde física e mental. “Estes trabalhos têm demonstrado que há uma redução significativa da perceção de solidão, até porque estamos a falar de pessoas que, muitas vezes, não têm relações de qualidade significativa e não se sentem reconhecidas na comunidade”, revela Inês Pestana.
A ideia é totalmente partilhada por Maria das Graças Santana. A idosa não se queixa de solidão, mas sublinha que, “para muitas pessoas é extremamente importante terem visibilidade, saírem de casa e serem vistas”. E isso reflete-se também no bem-estar geral das nossas cidades, acredita, porque “sempre que um idoso se sente integrado, visível e útil, acaba por ser mais feliz e contribuir para combater a solidão que se vê em todo o lado, seja em Lisboa ou no Rio de Janeiro”. Filomena Paiva acena afirmativamente com a cabeça e lembra que o isolamento social dos idosos raramente é desejado, mas resulta quase sempre de limitações físicas. “Depois de uma vida inteira de trabalho, as minhas pernas já não aguentam mais, estão uma desgraça, mas com esta ideia das bicicletas consigo ter mais liberdade”, explica a nonagenária, que começou a trabalhar aos nove anos e depois tornou-se porteira de um prédio em Alvalade, onde ainda vive.
Faça chuva ou faça sol, está sempre pronta para as curvas, mesmo em dias de alerta laranja, como aconteceu na manhã em que estivemos com ela, com avisos de cheias e rajadas de vento por toda a cidade. “Por mim, não há problema, só não quero que vocês se molhem”, repete atenciosamente. O tempo não aconselhava grandes passeios, mas ela própria encontrou uma sugestão: “E se me dessem boleia para casa?”. Solução encontrada! E lá foi ela de trishaw, sempre bem-disposta, a dizer adeus pelo caminho.


Sorrisos, lágrimas e uma “faísca nos olhos”
Unir gerações, promovendo a troca de experiências entre os idosos e pessoas de todas as idades é outra das mais-valias da Pedalar Sem Idade, que já transportou vários passageiros com mais de 100 anos. A maioria dos voluntários são jovens, mas também há reformados, alguns com mais de 75 anos, por isso não é raro acontecer que o piloto até seja o mais velho do passeio. “Desde que tenham condições físicas e façam a nossa formação e partilhem a nossa filosofia, todos podem juntar-se a nós, até porque hoje em dia os trishaws já têm apoio elétrico, o que ajuda bastante”, revela Inês Pestana. A diretora de operações recorda que “muitas vezes, os voluntários dizem-nos que quem mais ganha com os passeios são eles próprios, sobretudo os imigrantes, porque também é uma forma de se sentirem integrados na comunidade”.
Assur Valsassina, reformado italiano de 65 anosa a viver em Portugal, é um dos voluntários mais ativos, realizando todas as semanas dois ou três passeios. Move-o a paixão pelas bicicletas – chegou a participar nos mundiais de BTT – e, sobretudo, a vontade “de fazer os outros felizes, enquanto descobrem aquela sensação única de liberdade e velocidade porque, para muitos, aquele é o ponto alto do dia”. Desde que se juntou à Pedalar Sem Idade, há quase dois anos, já fez mais de 200 passeios e alguns nunca mais lhe saíram da memória. “Houve uma em particular que deixou marca, com uma senhora que quase não fala, mas que imediatamente depois de um passeio perguntou-me quando íamos começar a volta, ou seja, já tinha perdido aquela memória”, recorda este antigo diretor-executivo numa seguradora. Mas também há histórias felizes, ainda que envolvam lágrimas, “como a de uma pessoa que me pediu para subir até ao alto do Parque Eduardo VII, o que não é fácil por ser sempre a subir, e quando chegou lá acima desatou a chorar, dizendo que há 40 anos que não estava ali naquele sítio tão bonito”. Emocionado, sublinha que “coisas como estas são únicas, não há salários que compensem momentos assim”.
A Pedalar Sem Idade organiza passeios gratuitos todos os dias, a maioria com rotas pré-definidas, mas também é possível fazer adaptações e desvios, como aconteceu com Filomena Paiva que, naquele dia de intempérie, pediu para a levarem a casa. Embora comece por dizer que não tem preferência pelo local, já que “o mais importante é passear, seja lá onde for”, acaba por admitir que gosta especialmente “daquele sítio onde fazem concertos no Verão” [o Parque da Bela Vista], porque faz-lhe lembrar o campo, provavelmente numa reminiscência dos primeiros anos de infância, passados nos arredores de Penamacor. “Ela adora ir lá, e eu também”, acrescenta a amiga Maria das Graças Santana porque “há muitas flores para colher e até ovelhas já lá vimos”. E assim se vê que a felicidade pode caber num banco de trishaw.
As duas aproveitam a parceria que a Pedalar Sem Idade tem com o Centro Social e Paroquial Santa Joana Princesa, tal como acontece com muitas outras instituições, desde lares a centros de dia, passando por serviços de apoio domiciliário. Mas qualquer pessoa pode marcar um passeio a título individual, sozinha ou acompanhada por um amigo ou familiar. Assur Valsassina lembra que alguns idosos também lhe pedem para conhecer diferentes percursos, por isso é comum vê-lo de trotinete a descobrir novos caminhos pela cidade e a fazer o reconhecimento de circuitos (sobretudo em ciclovias) para apresentar mais tarde aos passageiros.
Os passeios costumam durar entre 45 minutos e uma hora, “quase sempre com uma troca de histórias animada”, embora também há casos em que o convívio se prolonga um pouco mais, revela o voluntário, por exemplo, “para beber um café ou comer um gelado pelo caminho”. E uma coisa é certa: “o impacto na saúde física e mental dos passageiros é mesmo real”, garante: “vejo isso, sobretudo, naquelas pessoas com mais problemas, que não costumam reagir ou interagir. Mas, no fim do passeio, há uma diferença, ou seja, surge um brilho especial nos olhos diferente, uma faísca que antes não havia e depois aparece”.

